A avó morreu. Ligaram agora há pouco do hospital para dar a notícia. Eu atendi o telefone; era a tia Berê; ela só perguntou quem estava falando e quando eu disse meu nome ela mandou chamar meu pai. Não disse nem oi ou qualquer palavra carinhosa como costuma fazer quando falo com ela ao telefone. Por essa mudança de seu tratamento comigo, senti que não vinha notícia boa por aí. Meu pai atendeu o telefone, Alô... sim,,, a que horas?... Está bem... sim, vamos sim... obrigado por avisar.
Não era preciso falar mais nada, mas ele falou, A vovó morreu. Vim para o meu quarto e comecei a tremer, não a chorar, mas a tremer, apesar da noite estar quente. Não sei porque reagi assim, talvez porque sempre me disseram que homem não chora e eu já sou quase um homem, ou talvez por ter sido muito chorão até o dia em que, aos doze anos, meu pai, ao invés de me consolar, disse, Você também só chora; parece uma manteiga derretida. Naquele dia tive vontade de fugir, sumir desta casa para nunca mais voltar. Na verdade, eu fugi. Logo após meu pai dizer isso, eu fiquei tão revoltado que saí de casa só com a roupa que estava usando. Meu desaparecimento seria um castigo por não me compreenderem. Fui até a esquina e não descobri nenhum lugar aonde ir; assim, dei meia volta, joguei o meu orgulho no lixo e voltei para casa sem que ninguém soubesse dos meus planos de fuga e castigo. Acho que junto com aquele orgulho devo ter jogado também no lixo o meu choro fácil.
A avó está morta e só o que consigo fazer é tremer e tremer, sem derramar uma só lágrima por ela, apesar da tristeza que sinto.
A morte é estranha. Ela transforma a pessoa que morreu em alguém feito só de qualidades boas, fazendo com que a gente esqueça seus defeitos. A avó já me deixou bravo várias vezes e não consigo lembrar as razões. Parece que essas razões foram apagadas da minha memória. Em compensação, as coisas boas que ela me fez e me ensinou estão vindo a todo instante à minha mente. E são essas coisas boas que estão como que me obrigando a escrever o que estou escrevendo agora. A avó morreu, nunca mais teremos a sua presença ao nosso lado e eu tenho medo de que as boas coisas que ela ensinou, ao menos para mim, desapareçam com o tempo. Acho que é por isso que eu escrevo: para manter a avó um pouco viva, assim como que reencarnada nas palavras.
Faz tempo que a avó estava morando com uma tia minha, mas ela morou muitos anos aqui em casa. Lembro-me dela preparando mingau ou banana amassada com aveia e me dando na boca em colheradas, quando eu era pequeno; ou sentada no sofá em frente à televisão, com a minha cabeça em suas pernas, acariciando-me os cabelos para eu dormir; cuidando das roseiras no jardim; costurando ou consertando as roupas, sempre com a lata antiga de biscoito onde guardava a tesoura, as linhas, as agulhas, o dedal, os botões. Ninguém podia mexer naquela lata, só ela, e, por isso, a lata era um objeto de certa forma proibido e tentador, pedindo a toda hora que eu a pegasse e abrisse, sozinho, escondido do olhar de todos, e descobrisse dentro um segredo que, naturalmente, não havia, a não ser na minha cabeça. Quando penso na lata proibida, acho que Adão sentia a mesma coisa que eu sempre que olhava para a maçã no Paraíso. Ele comeu a maçã, mas eu jamais abri escondido aquela lata que, provavelmente, agora que a avó morreu, vai parar na lata de lixo.
A avó morou muitos anos aqui em casa. Por vê-la todos os dias, todas as horas, eu não pensava na importância que ela tinha na minha vida. Eu só comecei a percebê-la de uma maneira diferente quando ela passou a conversar comigo sobre algumas coisas da vida, a me ensinar o que a vida lhe havia ensinado. Após a primeira conversa séria que tivemos, outras se seguiram e me ajudaram a organizar dentro de mim alguns sentimentos confusos que me deixavam inquieto. Após a primeira conversa séria que tivemos, descobri na avó uma amiga em quem podia confiar. Após a primeira conversa séria que tivemos, descobri que, apesar da grande diferença de idade entre nós, com sua compreensão ela se tornava jovem como eu e, com sua atenção, fazia-me sentir não uma criança dizendo coisas tolas mas um homem discutindo seus problemas.
Lembro-me até hoje da primeira conversa séria que tivemos.
Eu estava num canto da sala quando a avó se aproximou, Por que este meu netinho está tão quieto e triste, aí sentado? Olhei para ela e tentei forçar um sorriso, sem conseguir. A avó sentou-se ao meu lado, passou a mão nos meus cabelos, acarinhando-me, Você não quer me contar o que está te aborrecendo? Demorei ainda algum tempo a falar pois não estava conseguindo dizer nenhuma palavra. Sentia um nó na garganta que me faria chorar se dissesse alguma coisa. É que um aluno lá da escola morreu ontem, consegui dizer por fim. Era amigo seu?, perguntou-me a avó após algum silêncio, tentando talvez encontrar algo para me dizer. Não, vó, eu só conhecia ele do recreio. O que me deixa triste é lembrar que antes de ontem ele estava vivo e brincando, e hoje está morto, imóvel dentro de um caixão debaixo da terra e sendo comido pelos bichos. Eu fico pensando em mim, em tantos planos que tenho para o futuro e que quero realizar, e pergunto: e se fosse eu que tivesse morrido? A morte é muito triste, vó, e eu tenho medo dela. Eu acho que a senhora não entende este meu medo porque a senhora é muito sábia.
Ainda me afagando os cabelos, a avó sorriu e olhou-me com certo espanto, procurando entender o que eu havia dito por último. Sábia? Quem te disse que sou sábia?; Foi a minha professora, vó. Eu disse pra ela que estava com medo da morte e ela falou que isto acontecia porque eu sou muito jovem ainda e que quando eu for velho e tiver tido muitas experiências na vida não terei mais medo da morte porque vou ter adquirido a sabedoria que só os velhos têm.
Dando um suspiro, a avó baixou os olhos para o chão, refletindo sobre o que eu havia acabado de dizer. Talvez sua professora esteja certa e eu seja realmente sábia. Hoje eu sei muito mais sobre a vida do que quando era jovem. Com a experiência de hoje eu não cometeria muitos erros que cometi no passado. Entretanto, eu desconheço a morte. Imagino o que seja ela, tenho esperança de continuar a existir mesmo após ela vir me buscar e é esta esperança que me ajuda a não ter mais medo. Quando você for mais velho e seus parentes e amigos tão queridos começarem a partir para o além, e você não puder mais vê-los e tocá-los ou conversar e divertir-se a seu lado, sentirá um vazio e uma saudade tão grandes e pensará no quanto seria bom estar com eles novamente, caminhar lado a lado como nos bons tempos. Aí a morte deixará de ser este monstro que agora te assusta e se transformará no único meio de reencontrar aquelas pessoas queridas que nos deixaram.
Aquelas palavras da avó mexeram realmente comigo, provavelmente porque eu estava muito sensível à idéia da morte, e, de uma certa forma, me confortaram um pouco. Pensei que minha professora estava certa, E isto não é sabedoria, vó? E ela, Meu querido, em relação à morte e aos mortos não sei se sou sábia ou simplesmente saudosa.
Se eu tivesse de estabelecer um momento preciso em que comecei a deixar de ser simplesmente uma criança, o momento seria o desta primeira conversa séria com a avó. A partir daí, deixei de apenas sentir a vida e passei também a pensar sobre ela.
Não era sempre que a avó e eu conversávamos. Ela tinha seus serviços e eu tinha a escola, a lição, as brincadeiras com os amigos. Na maioria das vezes em que ela falava comigo, era para me chamar a atenção, me corrigir, me pedir para fazer algo. Muitas vezes eu ficava bravo com ela, mas após nossa primeira conversa séria eu sabia que, no momento em que precisasse, em que tivesse qualquer dúvida ou medo, eu poderia procurá-la.
Havia uma tia que vinha até nossa casa de vez em quando e que era muito religiosa. Ia à missa todos os dias às seis da tarde e sempre que me encontrava, me dava lições para eu ser um homem bom e justo. Apesar de ainda ser uma criança, eu já tinha minha idéia de para que serviria a religião, e ela deveria servir para ajudar as pessoas, para consolá-las, para deixá-las tranqüilas. Só que, todas as vezes que a tia falava comigo de religião, eu ficava apavorado. Uma vez, fiquei toda uma noite sem dormir pensando na "danação eterna" por causa dos meus pecados. Uns dias antes da tia aparecer em casa, eu estava com vontade de tomar sorvete e não tinha dinheiro. Fui até a cantoneira do armário da cozinha, onde ficava guardado o troco das compras, e peguei escondido o dinheiro para o sorvete. Pelo que a tia me disse, eu ia arder no fogo do inferno por toda a eternidade porque havia roubado.
Quando o dia amanheceu e a avó acordou, fui conversar com ela, desesperado. A avó foi até o seu quarto e voltou trazendo um caderno. Eu também já tive este mesmo pavor que você está tendo, há muito tempo atrás. E para acabar com este medo, depois de pensar muito, escrevi uma história que vou ler para você e espero que ela te ajude como me ajudou.