Lembro-me que, depois de conversar com a avó e ouvir esta história, fiquei com pena do meu primo e convidei-o para vir aqui em casa. Brincamos muito e nunca o vi tão feliz como aqui. Só que sua mãe não deixou que ele voltasse mais vezes e ele continuou em sua casa, cercado por centenas de brinquedos, sozinho.
Uma das últimas lições que a avó me deu, deu-a sem saber.
A avó já estava no hospital, muito doente. Um dia, fui visitá-la e entrei em seu quarto semi-escuro, num momento em que todos estavam no corredor , conversando. A avó dormia.
Fiquei olhando para ela por um longo tempo, lembrando do tempo nem tão distante, antes de se mudar para a casa de outra filha, em que ela estava saudável e forte, morando lá em casa, vivendo conosco, ensinando-me tudo o que me ensinou.
E agora, lá estava ela, doente e fraca, sofrendo muito.
Eu ainda estava olhando para ela, quando seus olhos se abriram, arregalados. Vó?, chamei, a senhora está bem? Ela não respondeu. Sua respiração foi ficando ofegante. Cada aspiração mais intensa. Os olhos ficaram esbugalhados, girando como se procurassem algo com enorme aflição. A avó estava tendo uma crise. O médico já havia previsto crises que poderiam matá-la, se não fosse socorrida imediatamente.
Vó?!, chamei novamente, segurando-a com as duas mãos.
Fiquei desesperado, ali sozinho. Soltei a avó e virei-me em direção à porta, dizendo, Vó, fica calma que eu vou chamar o médico. Antes de chegar à porta, parei. Em poucos segundos, milhares de idéias e imagens passaram pela minha cabeça. Eu me coloquei no lugar da avó e conclui que, se eu fosse ela, preferiria morrer agora do que prolongar a agonia por mais tempo.
Sentei-me ao pé da cama e orei. Um tremor passou a dominar meu corpo e, como sempre, não consegui controlá-lo. Mas uma estranha força me deteve e uma espécie de voz gritou dentro de mim, Você preferiria morrer, é uma opinião sua. E sua avó? Será que ela também preferiria? Que direito tem você de decidir sobre a vida dela?
Olhei pros olhos da avó e senti neles uma expressão de súplica. Levantei, corri pra porta e gritei por socorro. Um médico apareceu e socorreu a avó. Graças a Deus não foi desta vez!, disse o médico aos nossos parentes, ao se retirar.
Algum tempo depois, fomos para casa, mas voltei no dia seguinte. Quando entrei no quarto, a avó estava acordada e lúcida. Conversamos muito tempo e, quando comentamos a crise da noite anterior, ela exclamou, Que bom, meu neto, que ainda estou com vocês!
A avó não compreendeu exatamente o motivo do meu silêncio ao ouvir estas palavras.
Ontem também fui visitá-la. Durante toda a visita eu não disse nada. Fiquei sentado na cama ao lado da dela, tentando controlar o tremor no meu corpo, o mesmo tremor que tive ao saber de sua morte. Na hora de vir embora, dei-lhe um beijo e disse, Fica boa logo, viu, vó? Ela sorriu e respondeu que já era hora de virar borboleta. Virar borboleta, vó?! O que é isso?!; Você lembra, meu bem, daquela lagarta que uma vez encontramos no jardim lá de casa? Fiz que sim com a cabeça. Todo dia nós íamos ao jardim e lá estava ela. Com um mundo tão grande, devido à sua limitação física, o seu mundo ficava restrito àquele pequeno jardim. Você se lembra que ela teceu um casulo à sua volta e, depois de um tempo saiu de dentro do casulo transformada numa linda borboleta? Bateu asas em volta do jardim, pousou em algumas plantas como se estivesse se despedindo e, então, ganhou o mundo. Eu também, até agora, fui uma lagarta. Fiz muita coisa, não tudo o que queria, pois havia uma série de restrições sociais e econômicas que podaram muitos dos meus sonhos. Mas na medida do possível, fiz tudo o que estava ao meu alcance e fui feliz. E agora o meu espírito sairá livre como a borboleta do nosso jardim. Naquele instante, senti que a estava perdendo para sempre e, não querendo isso, supliquei, Eu também quero ser borboleta, vó! Quero voar junto com a senhora! A avó passou a mão suavemente em meu rosto e falou, Não, meu querido, ainda não é a sua hora. Você, para se transformar em borboleta, tem de primeiro viver como lagarta. É a lei natural da vida. Mas, enquanto for lagarta, conheça ao máximo o teu jardinzinho. Não tenha preguiça, pela distância, de passar de uma planta para outra. Agora vá. Minha lagartinha, que a vovó precisa descansar.; Tchau, vó!; Adeus, meu querido!
Não tornei a ver a avó com vida.
A avó morreu e eu estou aqui em meu quarto, sozinho, escrevendo durante toda a noite, relembrando tudo o que consigo, para jamais esquecê-la.O dia já está amanhecendo e estou escutando barulhos pela casa. Já devem estar se arrumando para o enterro.

Nenhum comentário: