Naquela noite, dormi tranqüila e pesadamente. O fantasma da danação eterna havia partido. A avó, mais uma vez, me ajudou a enfrentar um problema, me confortou e me ensinou, mesmo sem o saber, a importância da literatura. Até então, a literatura sempre tinha estado relacionada à escola; a professora afirmava sempre que a literatura deveria dar prazer a todos os que lessem; para mim, era uma obrigação chata e sem sentido. Ouvindo a história da avó e sentindo em mim o seu efeito, como ela o havia sentido quando a escreveu, percebi que a literatura me permitia experimentar coisas e sensações que iam além das coisas e sensações que eu podia experimentar na vida que eu levava. Enquanto a avó falava, eu era aquele homem no parapeito da ponte. Eu sentia o que ele estava sentindo e as palavras do outro homem haviam sido ditas diretamente a mim. Acho que a literatura é um pouco mágica, fazendo a gente se transformar em outras pessoas, viajar por lugares e tempos distantes, viver as mais diferentes experiências sem levantar da poltrona onde estamos sentados, lendo. Ler é outra forma de viver.
Eu pedi o caderno da avó emprestado e copiei a história. Dobrei a folha copiada, coloquei num envelope e levei de presente pra tia. Ela abriu e começou a ler. À medida que lia, seu rosto foi ficando vermelho. Quando terminou, dobrou a folha, colocou no bolso, olhou pra mim sem dizer nada e saiu da sala. Da cozinha, ouvi sua voz dizendo para alguém, Esse menino está esperto demais pro meu gosto. O fato é que nunca mais ela me procurou para dar suas lições de moral religiosa.
Essa mesma tia, em outra ocasião, permitiu que a avó me ensinasse algo sobre a diferença entre falar e fazer. Há pessoas que falam muito em fazer o bem, dão esmolas aos pobres por ser um ato rápido e fácil, que lhes aliviam a consciência. Mas um ato real de bondade, de “consideração humana”, como me disse a avó, é mais difícil. A avó me disse que, infelizmente, as pessoas não estão acostumadas a FAZER coisas boas — para os outros, é claro!
Há um tempo atrás, o marido de uma cunhada dessa tia faleceu. Como era um homem muito pobre — e por esta razão havia se distanciado de nossa família —, não tinha onde ser enterrado. Alguns parentes procuraram a tia para pedir-lhe que o enterrasse no túmulo de nossa família. Ela, a beata que freqüentemente ia à missa e me dava lição de moral, foi terminantemente contra o enterro ali, Onde já se viu misturá-lo com nossos parentes?!
Uma amiga dela, que por acaso estava visitando a tia, ao ouvir aquilo, ofereceu-se prontamente para enterrar o defunto no jazigo de sua família. Você está ficando louca?!, disse-lhe a tia. Você nem conhece o homem e vai enterrá-lo junto aos seus mortos queridos?! Você deve estar ficando velha e louca! Essa amiga suspirou fundo — quando me contaram essa história, pensei que ela suspirou para não soltar um palavrão pra tia, que bem o merecia — e falou, Não conheço e nem preciso conhecer. É um ser humano como todos nós e que merece um enterro descente. Há espaço de sobra no túmulo da minha família e não creio que os meus mortos farão qualquer objeção.
A avó, ao saber da atitude da tia, ficou indignada. Eu também fiquei e não conseguia entender a tia. A avó me disse, depois, que, na verdade, muitas pessoas agiam igual à tia e poucas igual à amiga, e contou-me uma história que ilustrava isso.

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